Enaje reúne mais de mil juízes em SP para palestras sobre Inteligência Artificial, Direito, filosofia e saúde
Com uma palestra focada no constitucionalismo digital, o presidente do STF e do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, abriu a 8ª edição do Enaje (Encontro Nacional dos Juízes Estaduais), na noite de 14/11, no Memorial da América Latina. Realizado pela AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) em parceria com a Apamagis, o evento se estendeu por três dias, com foco principal na Inteligência Artificial e novas tecnologias e seus impactos, mas também com um olhar para questões como direito eleitoral e democracia, saúde dos magistrados, liberdade de expressão e filosofia.
Ao todo, foram realizadas 12 palestras. A Apamagis também apoiou a AMB na realização de uma programação cultural no primeiro e no último dia, no Clube Monte Líbano, com shows do Ira! Ivo Meirelles e de bandas de juízes. Mais de mil magistrados acompanharam a programação, superando as expectativas dos organizadores.
“A partir do mundo digital, a democracia se transforma para ser mais direta, mais transparente e mais acessível. E é sobre isso que iremos falar nos próximos três dias”, disse o presidente da AMB, Frederico Mendes Júnior, em seu discurso de abertura. O magistrado também ressaltou o valor do associativismo como fator de união e conquistas que resultam na valorização da carreira. Ele afirmou que, embora a atuação da AMB seja imprescindível, grande parte dos resultados vem do trabalho das lideranças das associações regionais. Por essa razão, os presidentes das associações regionais compuseram o palco na cerimônia de abertura do 8º Enaje.
Anfitrião do evento, o assessor da AMB e presidente da Apamagis, Thiago Massad, fez um discurso de boas-vindas lembrando a contribuição de estrangeiros e de brasileiros de outros Estados na construção dessa São Paulo multicultural e cosmopolita. “Mais do que nunca, precisamos nos unir para construir um futuro, e que essa diversidade se apresente como nosso maior trunfo. Que possamos celebrar nossas raízes, fortalecer nossa Magistratura e nos orgulhar da rica tapeçaria que urdimos. Sejam muito, muito, muito bem-vindos.”
Além do ministro Barroso, de Frederico Mendes Júnior e Thiago Massad, compuseram a linha de frente do palco a coordenadora da Justiça Estadual da AMB, Vanessa Mateus; o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Joel Ilan Paciornik; o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Fernando Antonio Torres Garcia; e o secretário de Governo e Relações Institucionais do Estado de São Paulo, Gilberto Kassab; o 1º vice-presidente da Apamagis e responsável pela comissão científica do Enaje, Walter Barone; o secretário da Justiça do município de São Paulo, Fernando José da Costa (representando o prefeito Ricardo Nunes), e o presidente do Memorial da América Latina, Pedro Mastrobuono.
Democracia
Na palestra inaugural, o ministro Barroso abordou o tema do constitucionalismo digital, apresentando um panorama sobre a massificação da internet, a revolução tecnológica e a ascensão das plataformas digitais.
Para o ministro, “a revolução tecnológica impactou o mundo e trouxe muitos benefícios, inclusive a democratização do acesso ao conhecimento, à informação e ao espaço público”. No entanto, disse que é necessário regular as big techs e a IA. Com isso, se buscaria uma tributação justa, para impedir a dominação do mercado e proteger os direitos autorais. “É imperativo, também, proteger a privacidade das pessoas e evitar comportamentos coordenados inautênticos que amplificam a mentira e discursos de ódio”, acrescentou.
A palestra ocorreu na noite seguinte às explosões registradas em Brasília, nas proximidades do STF e no estacionamento da Câmara dos Deputados.
Cortes superiores
Quatro ministros subiram ao palco do auditório Simón Bolívar, no Memorial da América Latina, no segundo dia de Enaje. A primeira foi a presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) Cármen Lúcia, que primeiramente citou que a Justiça Eleitoral garantiu eleições seguras, transparentes e com um volume de fake news inferior ao inicialmente previsto.
Cármen Lúcia também abordou o impacto do mundo disruptivo no Judiciário, destacando que, embora a tecnologia seja benéfica para a prestação jurisdicional, a regulação é imprescindível. Disse ainda que Justiça está associada à sensibilidade: “O bom juiz, quando fala, a Justiça se pronuncia”. Para a ministra, o magistrado deve valer-se de técnicas e tecnologias, “mas é preciso trabalhar com a ideia de que há muitas e enormes desumanidades praticadas”.
A capacidade dos juízes de se adaptarem às inovações foi um dos pontos explorados pelo ministro José Antonio Dias Toffoli (STF). Para ele, a Magistratura do Brasil é a mais moderna e independente em nível global. Como exemplo, citou a capacidade de julgamento dos juízes e dos tribunais, que administram um acervo de 83 milhões de processos.
“Precisamos mostrar isso ao mundo. Isso é um asset — para usar um termo econômico —, é um soft power. Nosso soft power não é mais o futebol, são as nossas instituições, e o mundo tem que ver como são sólidas.”
O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Joel Ilan Paciornik abordou as novas fronteiras do Direito, especialmente no Direito Penal no mundo virtual. Para ele, é essencial reinterpretar o mundo da criminalidade sob uma nova perspectiva.
“Através de um celular ou computador, a milhares de quilômetros de distância, pessoas praticam crimes. Precisamos ressignificar as clássicas teorias do Direito Penal sobre o tempo e o lugar do crime. Concebemos, em 1940, teorias que tratam do tempo e do lugar da consumação do crime. Hoje, temos crimes praticados na internet, e o Estado ainda não possui mecanismos suficientes para combater esse tipo de criminalidade.”
Os dilemas entre o público e o privado, a liberdade de expressão, a polarização ideológica e o fascínio das redes sociais foram temas abordados pela ministra Morgana de Almeida Richa (TST). A magistrada apresentou um panorama dos atos normativos recentes sobre juízes nas redes sociais e as regras que estabelecem limites para suas manifestações.
Segundo a ministra, o juiz intramuros continua sendo juiz. “Os magistrados são vistos como magistrados onde quer que estejam, inclusive nas redes sociais. A imparcialidade é o santo graal do Judiciário. E quando postamos concepções, opiniões e preconceitos, isso compromete a percepção de imparcialidade do Judiciário e do Sistema de Justiça.”
Compartilhando do mesmo palco que Morgana de Almeida Richa, a desembargadora Andréa Pachá (TJRJ) discorreu sobre a garantia do acesso à Justiça e aos direitos fundamentais em tempos de virtualização. Nesse sentido, lembrou que muitos conflitos poderiam ser solucionados sem judicialização, mas não é dessa forma que a sociedade enxerga, majoritariamente.
“Precisamos assumir o papel de garantidores dos direitos fundamentais e dar respostas adequadas à sociedade. Não podemos assimilar demandas de uma sociedade infantilizada que deseja interferências estatais seletivas, mas, sim, focar na redução das desigualdades.”
Inovação, filosofia e cultura
A primeira palestra do segundo dia, ainda pela manhã, foi do empresário Guga Stocco, especialista em Inteligência Artificial. Para o palestrante, se a IA for utilizada com cuidado, pode ser uma grande aliada do Poder Judiciário: “O juiz pode contar com esse auxílio e criar seus próprios modelos, o que, provavelmente, tornará o trabalho muito mais assertivo e fácil, além de eliminar tarefas repetitivas.”
Mesmo que a tecnologia retire das mãos humanas boa parte das tarefas, Stocco destacou que não vê uma substituição completa: “Imaginar o que não existe: isso só o ser humano é capaz”.
À tarde, a programação foi retomada com a palestra “Aspectos filosóficos do relacionamento humano”, da filósofa, professora e escritora Lúcia Helena Galvão. A professora convidou a audiência a rever conceitos cristalizados, lembrando que o apego às certezas pode ser um dos grandes obstáculos à evolução pessoal e coletiva. “É doloroso admitir, mas necessário: eu não sou dono de nenhuma verdade. Todas as minhas visões são provisórias e devem ser submetidas ao aperfeiçoamento. Assim, eu cresço, e os atritos se tornam produtivos.”
Em seguida, houve a entrega da Comenda Cruz do Mérito da Magistratura, homenagem que reconhece a dedicação das lideranças agraciadas e suas relevantes contribuições para o fortalecimento da Justiça brasileira.
A programação do dia foi encerrada com a peça “O Deus de Spinoza”, com texto do desembargador aposentado Régis de Oliveira, e direção e adaptação de Luiz Amorim. Com um texto envolvente e de fácil compreensão e participação de três músicos, o espetáculo narrou a história do filósofo Baruch Spinoza (1632-77) execrado pela comunidade judaica após expor suas teorias que confrontam a existência de Deus da maneira que prega a Torá, livro sagrado dos judeus.
Encerramento
A saúde mental da Magistratura na era virtual foi tema das palestras da médica Carolina Gomes Gonçalves e da conselheira do CNJ Daiane Nogueira de Lira. Ambas falaram sobre a sobrecarga de trabalho dos magistrados e da urgência de tratar a saúde mental como prioridade institucional. “Se deixarmos de olhar para os juízes como máquinas, não os resumindo a números, tenho certeza de que daremos um grande salto”, afirmou a conselheira Daiane Nogueira de Lira. Ela defendeu uma abordagem transversal para a formulação de políticas públicas voltadas à saúde mental.
A médica Carolina Gonçalves disse que há uma sobrecarga nas Varas iniciais, que apresentam maior incidência de problemas de saúde mental. “Esse é um tema urgente, que precisa ser falado”, enfatizou. A palestrante também sugeriu a criação de comitês de bem-estar e programas de treinamento nas escolas da Magistratura, além de mentorias no início da carreira e iniciativas que reduzam o isolamento dos juízes.
Os impactos da digitalização no funcionamento do STJ foi o tema desenvolvido pelo ministro do STJ Sérgio Kukina. Para o magistrado, o uso da Inteligência Artificial no Judiciário é um processo irreversível, mas é necessário estar sempre sob supervisão zelosa dos juízes.
“No encontro da UIJLP [União Internacional dos Juízes de Língua Portuguesa] em novembro, uma das conclusões foi esta: os juízes devem ser capacitados para entender como as tecnologias de IA funcionam. Além disso, os julgadores terão que compreender que essa tecnologia serve para apoiar, mas nunca substituir o julgamento humano. Não se pode perder de vista o olhar do julgador humano”, disse o ministro.
O presidente do Tribunal da Relação do Porto, em Portugal, José Igreja Matos, apresentou em sua palestra uma visão semelhante, complementando as avaliações do ministro Kukina. “Não podemos comprometer a independência judicial porque, sem isso, não seremos juízes. É preciso manter nossa autonomia decisória”, afirmou. “Aceitar a sugestão da máquina sem escrutinar é cometer uma violação ética”, concluiu.
A utopia liberal e as contradições modernas foram temas trazidos pelo professor e filósofo Luiz Felipe Pondé na última palestra do Enaje. Segundo o palestrante, o que as pessoas querem, dentro da teoria liberal, é um Estado que lhes ofereça autonomia e liberdade para as decisões. No entanto, esse ser humano do projeto liberal, capaz de tomar decisões sobre tudo, não existe.
Aos magistrados, Pondé disse: “Vocês são os guardiões de uma sociedade que não sabe mais resolver seus próprios conflitos”. A litigiosidade, ele alertou, só vai crescer. Não porque nos tornamos mais livres, mas porque perdemos a capacidade de nos entender.
*Com informações da AMB
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