Literatura Distópica

20 de novembro de 2022

Paulo Eduardo Razuk

Desembargador aposentado do TJSP                                                                                

Bacharel e Doutor em Direito pela USP

Utopia é uma ilha imaginária, com um sistema político ideal, segundo a concepção de Thomas Morus (1477/1535). Consoante o Dicionário Houaiss, utopia é qualquer descrição imaginativa de uma sociedade ideal, fundamentada em leis justas e em instituições  politico-econômicas comprometidas com o bem estar da coletividade. Ou seja, uma quimera ou fantasia, de natureza irrealizável.

Distopia vem a ser o contrário de utopia, isto é, lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação. Ainda, qualquer representação ou descrição de uma organização social futura caracterizada por condições de vida insuportáveis, com o objetivo de criticar tendências da sociedade atual ou de parodiar utopias, alertando para os seus perigos.

É farta a literatura distópica, quer dizer, livros que descrevem sociedades distópicas no futuro, ou que parodiam regimes políticos atuais. Convém citar alguns.

O mais antigo a ser destacado é “Nós”, romance publicado em 1924, de autoria do escritor russo  Ievguêni  Zamiátin,  cuja história narra as impressões  de um cientista sobre o mundo em que vive, uma sociedade aparentemente perfeita mas opressiva. Descreve os seus conflitos, percebendo as imperfeições do modelo ao travar contato com um grupo opositor que luta contra o Benfeitor, regente supremo da nação, fortemente inspirado em Joseph Stalin, ditador da União Soviética. Descreve um ambiente de casas de vidro, onde todos são visíveis e vigiados uns pelos outros. Na busca pela igualdade, os habitantes são quase indistintos em seus uniformes de cor cinza. Ninguém recebe nomes, apenas números costurados nas túnicas.

Na mesma linha, a escritora russa Ayn Rand  publicou em 1938 o livro “ Cântico”, em que identifica o coletivismo, a ideia de que os indivíduos devem ser subjugados pelo grupo e sacrificados pelo bem comum. No futuro, não existem bens pessoais nem amor romântico, sendo todas as preferências  pessoais tidas como condenáveis. Não existe eu nem meu, mas apenas nós e nosso. Qualquer indicativo de pensamento próprio configura crime contra a igualdade.

Em 1932, Aldous Huxley publicou “Admirável Mundo Novo”, onde descreve a sociedade inglesa em 2450, em que antecipa o desenvolvimento em reprodução humana, hipnopedia (transmissão de informações a uma pessoa adormecida), manipulação psicológica (influência social para mudar o comportamento das pessoas) e condicionamento clássico (modificação do comportamento com base no estímulo do sistema nervoso central).  A família é abolida. Através de manipulação genética, os seres humanos são estratificados em castas: alfa, beta, gama, delta e ípsilon, cada qual usando uniforme com a cor correspondente a sua casta: cinza, amora, verde, cáqui e preto. Os seres humanos são concebidos em provetas e gestados em incubadoras, vedada a reprodução natural e relegado o sexo ao entretenimento. Cada um deve comportar-se conforme o que se espera de sua casta, a fim de obter-se a felicidade. Huxley  vai além de seus predecessores ao apresentar o homem como um produto fabricado de acordo com modelos preestabelecidos.  Não é preciso pensar em mecanismos de controle de  comportamentos indesejáveis,  pois  sua  possível ocorrência  foi eliminada. Professar religião é tido como ato de ignorância e desrespeito à sociedade.

“1984” é um romance escrito em 1948 por George Orwell. Descreve o mundo futuro, em que três superpotências, Oceania, Eurásia e Lestásia,  travam uma guerra perpétua. Prevalece um regime político totalitário, onde o Estado fica sob o controle de uma elite privilegiada de um partido único, em que o governo persegue o individualismo e a liberdade de expressão, punida como crime de pensamento. A tirania é supervisionada pelo Grande Irmão, líder do partido, que goza do culto da personalidade. “BIG BROTHER IS WATCHING YOU” denota a vigilância invasiva frequente.

“Fahrenheit 451” foi publicado em 1953 por Ray Bradbury, como  uma crítica à sociedade americana. No futuro, os livros são proibidos, opiniões próprias são consideradas antissociais e a crítica é suprimida. Sendo as casas  à prova de fogo, a função dos bombeiros passa à queima de livros, a uma temperatura de 451 graus Fahrenheit, correspondente a 233 graus Celsius. Porquanto  os livros são ilegais, qualquer pessoa na posse de um livro se sujeita a detenção. O Estado passa a controlar toda informação, através da televisão.

Anthony Burgess publicou em 1962 “Laranja Mecânica”, livro em que a ação se desenvolve na sociedade inglesa, em um futuro distópico.  Alex, que aprecia música clássica, em especial Beethoven, é líder de uma quadrilha de delinquentes, que batem, estupram e roubam. Preso, é submetido a um tratamento psicológico, destinado a refrear os impulsos destrutivos de delinquentes, de duvidoso sucesso.

A literatura distópica serve a nos advertir contra o perigo do totalitarismo, que procura condicionar o comportamento das pessoas. Já vivemos em um mundo dominado por três superpotências, em permanente atrito, com a possibilidade de conflito nuclear, a acabar com a civilização. No Brasil, desde o registro civil do nascimento, recebe-se um número (CPF), que prepondera sobre o nome civil. Somos induzidos a ter um comportamento que se espera de nós, suprimida a iniciativa individual. Opiniões, somente as consideradas  politicamente corretas. O rádio nos bombardeia com a “pop music”. A televisão nos entretém com amenidades dispensáveis. A roupa passa a ser um uniforme composto por camiseta, calça de brim e tênis, igual para ambos os sexos e todas as classes sociais. A alimentação cada vez mais restringe-se  à “fast food” ou “junk food”. A bebida resume-se aos refrigerantes de sabor artificial. Como tudo isso não basta, além do álcool e do tabaco, ditas drogas lícitas, proliferam os soníferos e os antidepressivos, além das drogas ilícitas. Em “Admirável Mundo Novo”, precisamos do Soma para nos sentirmos felizes.

Com o desenvolvimento da tecnologia, passamos a ser vigiados e monitorados em nossas preferências. Aonde vamos, somos filmados, fotografados e registrados. A atividade na internet se sujeita à vigilância, podendo resultar em censura, busca e apreensão ou prisão, por externar uma opinião considerada perigosa ou mesmo por um bate-papo inconsequente. Já é possível coletar e cruzar uma enorme quantidade de dados pessoais e utilizá-los para estabelecer padrões  de comportamento e detectar possíveis desvios indesejados, a serem combatidos.

Na propaganda eleitoral, são empregadas técnicas de convencimento, com a apresentação de um candidato como um produto comercial. Agências de publicidade manipulam o eleitor, persuadindo-o a votar de maneira emocional e não racional. Com o suporte de tecnologia de ponta,  fabricam-se notícias e líderes por meio de perfis falsos em mídias sociais.

As adaptações de obras literárias e a preferência por textos rasos e curtos divulgados nas mídias sociais resultam em uma simplificação da língua, a Novilíngua, e por consequência no empobrecimento da capacidade de pensamento crítico.  Afinal, não temos tempo para leituras profundas.

Enfim, em muitos aspectos, já vivenciamos um sombrio presente distópico.

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