Conto de Raymond Carver estimula debate sobre as diversas interpretações do texto

4 de agosto de 2023

Tema do Clube de Leitura Amigos da Prosa e da Poesia da Apamagis realizado na terça-feira (1º/8), o conto “Tanta água, tão perto de casa”, do norte-americano Raymond Carver (1938-1988) envolveu os participantes em um animado debate sobre a interpretação que cada um teve da história e sobre o processo criativo do autor. “Foi uma mistura de oficina literária com clube de leitura”, disse a mediadora, a juíza Danielle Martins Cardoso. O convidado foi o escritor, engenheiro e coordenador de oficinas literárias Fernando Carneiro.

O encontro começou com uma explanação sobre literatura e a obra de Carver para depois avançar para a “teoria do iceberg” usada pelo escritor e outros grandes autores, e por fim um olhar minucioso sobre trechos do conto.

Raymond Carver alçou fama e prestígio na literatura norte-americana nos anos 1970 com um estilo minimalista surgido após sua parceria com Gordon Lish, editor da revista “Esquire”. “Gordon Lish enxugou seus textos em uma margem de 50%”, contou Fernando Carneiro.

O escritor norte-americano havia passado anos tentando reconhecimento profissional até essa parceria com Gordon Lish. Segundo o palestrante, Carver tinha enfrentado dificuldades financeiras e mergulhado no alcoolismo. Com os cortes de Lish, suas obras caíram nas graças de crítica e público. Conseguiu sair do alcoolismo, mas não largou o tabaco, e morreu de câncer no pulmão aos 50 anos.

Iniciantes

O conto discutido no encontro da Apamagis integra o livro de contos “De que falamos quando falamos de amor”. Após a morte do autor, a viúva de Carver, Tess Gallagher, lançou uma versão dessa obra com textos originais, sem os cortes de Gordon Lish. No Brasil, foi lançado como “Iniciantes”, nome que o próprio Carver havia dado originalmente.

Fernando Carneiro recomendou as duas versões, e as comparações feitas no Clube da Apamagis renderam constatações surpreendentes, que envolvem até o final da história.

A conversa sobre esse conto também foi a oportunidade para reconhecer no texto a aplicação da Teoria do Iceberg cunhada por Ernest Hemingway (1899-1961), usada por Carver e também identificada na obra de outros autores, como a canadense Alice Munro (1931-) e a neozelandesa Katherine Mansflied (1888-1923).

“O pioneiro dessa teoria foi Tchekhov, mas essa teoria não tinha esse nome. Ele quebrou paradigmas”, disse Fernando Carneiro. “Antes dele, o conto tinha começo, meio e fim, e tudo era construído para haver um clímax no final. Tchekhov trouxe um recorte que não necessariamente termina quando acaba.”

Como explicou o convidado, todos os contos têm situação inicial, acontecimento e transformação, mas com Tchekhov nem sempre esses três elementos estão presentes no texto: “Ele pode dar indício do que vai acontecer e a consequência. Ou há o acontecimento, e a consequência é sugerida. Ele expandiu o espaço do conto e fez com que ecoasse para além dos limites”.

Segundo Carneiro, Hemingway desenvolveu melhor a técnica trazida por Tchekhov, apontando que a parte omitida é o que fortalece a história. Assim, na ponta do Iceberg, à vista de todos, há a história 1, o texto narrando a trama. Na história 2, submersa, estão os pensamentos, sentimentos e motivos do personagem principal.

O que está submerso instigou o debate neste Clube Amigos da Prosa e da Poesia da Apamagis.

Veja o início desse conto, na versão original presente em “Iniciantes”, de Raymond Carver:

Tanta água tão perto de casa

Meu marido come com bom apetite, mas parece cansado, irritado. Masca devagar, os braços cruzados em cima da mesa, e fica olhado para alguma coisa do outro lado da sala. Olha para mim e olha de novo para longe, esfrega a boca com o guardanapo. Encolhe os ombros e continua a comer. Alguma coisa surgiu entre nós, ainda que ele prefira pensar que não.

“Por que fica olhando pra mim?”, pergunta ele. “O que é?”, pergunta e baixa o garfo sobre a mesa.

“Eu estava olhando?”, pergunto e balanço a cabeça de um jeito estúpido, estúpido mesmo.

O telefone toca. “Não atenda”, diz ele.

“Pode ser a sua mãe”, aviso. “Dean…pode ser alguma coisa sobre o Dean.”

“Vá ver”, diz ele.

Tiro o fone do gancho e fico escutando um minuto. Ele para de comer. Mordo o lábio e desligo.

“Eu não falei?”, diz ele. Começa a comer outra vez, depois joga o guardanapo em cima do prato. ”Droga, por que as pessoas não cuidam da sua vida? Me diga o que fiz de errado, eu quero saber: isso não é justo. Ela estava morta, não estava? Tinha outros homens lá, além de mim. A gente conversou muito sobre isso e todos nós resolvemos, A gente tinha acabado de chegar lá. A gente não podia simplesmente voltar, a gente estava a oito quilômetros do carro. Era o primeiro dia. Que diabo, não vejo nada de errado. Não, não vejo mesmo. E não fique olhando assim pra mim, está ouvindo? Não quero que você fique me julgando. Você não.”

“Você é que sabe”, digo e balanço a cabeça.

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